03 março 2012

A Bailarina e o Curry




À quase 9 anos atrás, quando eu e meu pai fomos ao Japão, buscar as cinzas de minha mãe, uma viagem triste mas que ficamos mais unidos, já que filho homem se apega mais a mãe, que o pai. Apesar da ocasião, a gente conversava sobre tudo. Perguntas que sempre tive vontade fazer a tempos, fiz. Ele também, esquecera um pouco da hierarquia e falamos de igual para igual. Acredite-se quiser. Nossa família mantém uma tradição antiga, onde hierarquia impera ainda nos dias de hoje. Propor idéia, é como uma grande empresa. Se não convencer, perco pontos. Confesso que é saco ter essa vida. 
Bom, numa terça feira de inverno, na cidade de Hakata, sul do país, fomos conhecer um restaurante fino e tradicionalmente japonês. Desde a sua entrada com um belo jardim, milimetricamente tratado, até a sua entrada que mais parecia vagas para dois carros.
Duas entradas. Uma para a ala de ozashikis e outra para o balcão. Não fizemos reservas, então sentamos no balcão. O Hana-ita, chef mór do estabelecimento, era muito simpático e gentil. 
Reparamos que um casal estava também de papo com o Hana-ita. E não pude evitar em ouvir a conversa, o que eles também gentilmente partilhou o assunto conosco.
- Minha filha está prestes a chegar aqui. Meu filho foi buscar no aeroporto e vem direto para cá.
- Ela mora no exterior?
- Ela está retornando depois de 3 anos. Mal acabou de se formar o colegial e partiu para Moscow para aprender balé.
- Que fantástico!! - exclamei.
A esposa só sorrisos:
- Mas ela é tem um gênio forte, que quando bota uma coisa na cabeça, não cede para ninguém. Momentos antes de embarcar, ela disse que não iria telefonar. E que era para a gente não telefonar, se não fosse um caso grave. Durante todo esse tempo, ela ma mandou apenas 3 cartas. Na verdade era um cartão de natal.
O marido.
- Puxa, foi uma tortura para nós. Minha filhinha, num país diferente, não sabe o idioma, a cultura e dá uma dessa? Porque ela não age como uma menina normal, dizendo que está com saudade e volta? - Enxugava os olhos.
Meu pai, calado até esse momento.
- Sua filha é uma jóia rara. Muito mais bela que muitas meninas a até de rapazes.
O clima estava bem familiar. Conversamos bastante, quando a porta abriu. Era um casal jovem. Um rapaz alto e uma moça linda, alta e magra. Era a própria bailarina.
Diferente do que costumamos ver no ocidente ou em filmes, onde todos pulam e se abraçam, discretamente fechou a porta do ryoutei, seguiu em direção ao pai e:
- Acabei de retornar, meu pai. - e apenas abaixou a cabeça.

Os pais, cheio de lágrimas e nós claro, em segundo plano, sorrimos e desejamos um bom retorno.

- Senhor Iida (nós), hoje pedi ao Hana-ita, o melhor cardápio que pudesse oferecer. O mais tradicional de todos os tradicionais. Imagine você longe do país natal por 3 anos, deve estar com uma saudade extrema da comida da terra. Por isso, queria dividir com você essa alegria, claro se não importar.
- De forma alguma.
E vários assistentes do Hana-ita, começaram a nos servir. Desde a entrada, belíssimos pratos que dava dó de comer, de tão bem montado. Todos com olhos e bocas cheias, mas reparei na bailarina. Embora aparentasse estar gostando, sabe quando um ângulo da sobrancelha, entrega que falta alguma coisa?
Os pais, não reparavam. E o circuito correu como combinado. O Hana-ita, depois do 3 prato disse:
- Vamos parar por aqui. Senão a moça, não conseguirá comer o verdadeiro prato que deseja.

Confesso que fiquei assustado. A comida estava excelente. Mais tradicional que isso, só voltando no tempo. Mas:
- Filha, não era isso que queria comer? Você queria comer sushi? Me fale que eu arrumo para você.
- A comida está ótima e não tenho nada para me queixar. Mas no fundo, eu queria tanto comer o KARÊ RICE (Molho Curry com Arroz) que a mamãe faz. Passei 3 anos longe do Japão. E ainda num país que mesmo no verão é frio, pensei em desistir várias vezes. Os treinos são puxados, o instrutor era rigoroso, tinha de respirar balé. Mas quando estava por fio de cabelo para voltar ao Japão, lembrava do Karê da minha mãe. Pensava comigo: “Vou aguentar aqui. Mas quando completar a jornada e voltar ao Japão, vou comer o karê de minha mãe até dizer chega.”
Sabe quando você pega o oshibori e disfarça limpando o rosto? Pois é. Eu estava fazendo isso.
O Hana-ita, entendeu de primeira e com sorriso no rosto:
- Nós que preparamos, estudamos e vivemos a gastronomia japonesa, temos um único adversário que jamais vamos superar. A comida de nossa mãe. Não há como superar, pois as nossas raízes saem dela. - Concluiu.
Só sei que por cerca de duas horas, além de saborear o que há de mais tradicional da comida japonesa, pude exercitar a minha sensibilidade, sentir o calor de uma família, lição de vida, exemplo de luta e a harmonia entre humanos, mesmo de desconhecidos.
E vocês? Já passaram por algo assim?